terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Crash! (Da série "Pensamentos na Holanda")

Foi preciso vir à Holanda, mais precisamente à biblioteca pública de Delft, para conseguir encontrar o DVD do filme Crash, do diretor David Cronenberg, o mesmo que fez, entre outros, A mosca. Não sei o que estava fazendo na época em que o filme estava no cinema (lá por 97). O filme, baseado em um conto de J. G. Ballard, conta a bizarra história de um grupo de fetichistas do automóvel. O clube passa a reconstituir acidentes famosos (James Dean e outros), com todo o realismo possível, e seus membros sentem atração sexual por cicatrizes adquiridas em colisões. Alguns dos quais mal podem parar em pé, de tantas sequelas.

A crítica de Robert Kurz mostrou que o filme é um simulacro e não aponta nenhuma transcendência. Mas em certa medida esta crítica é insuficiente. O filme apresenta o automóvel como um fetiche e mediador de relações sociais. Exagera? “Mas só o exagero é verdadeiro” (Adorno & Horkheimer). Afinal, o limite do capital é o campo de concentração, a dominação sem limites, e esse exagero foi bem real. Assim como Sade, ao mostrar o corpo humano como máquina de eficiência (nenhum órgão ou orifício pode ficar ocioso), desnudou a lógica do ritmo frenético do trabalho abstrato, assim como Nietzsche, ao identificar razão e dominação lançou luz sobre o lado escuro do Iluminismo, assim talvez Cronenberg e Ballard, ao escancarar o fetichismo do automóvel, tenham acessado sua verdade mais íntima. Tudo isso, talvez, contra-e-mais-além de sua própria intenção.

A íntima relação de automóvel e capital já foi mostrada por vários pensadores e grupos de esquerda, como Robert Kurz, André Gorz ou os PROVOS. Não por acaso, o esplendor do capitalismo ganhou o nome de “fordismo”, e a sua decadência coincide com a bancarrota de Ford, GM, etc. Foi no ritmo do automóvel que o capital consolidou sua dominação no século XX, e é o automóvel que domina o imaginário dos sujeitos-sujeitados do capital. É o automóvel que determina a forma e o conteúdo das cidades, destruindo o que ainda resta de espaço público de uso comum. O motorista é o protótipo do sujeito burguês: em sua lata-mônoda individual, ele alimenta sua ilusão de “status” e “liberdade”, enquanto não é capaz de ir senão aonde lhe dita o trabalho alienado e a indústria cultural. A pressa com que se desloca - quando não está preso em um engarrafamento - é proporcional à sua falta de liberdade real, à sua falta de autonomia sobre o uso de seu próprio tempo.

Mas pode-se ir mais além na metáfora de Ballard-Cronenberg (agora definitivamente à revelia deles): se aceitarmos, com Marx, que na sociabilização baseada na produção de mercadorias temos “relações sociais entre coisas e relações coisificadas entre pessoas” (fetichismo da mercadoria), então temos de considerar a psique dos trabalhadores abstratos. São esses os proletarizados que, vendendo sua força de trabalho, trabalham para produzir valor, mercadorias (ou em seus apêndices improdutivos para o capital: serviços, etc.), pouco importando a qualidade, o valor de uso, as consequências sociais e ecológicas do que produzem: o que importa é o ritmo da produção. Quem trabalha em abstrato faz abstração de si mesmo e de seu meio, é apático: auto-destruição e destruição da natureza em nome da acumulação sem fim de capital.

O psiquiatra Christophe Dejours aponta, então, uma dessensibilização radical no século XXI: já que os movimentos contestatórios são cada vez mais desarticulados e não se vê mais perspectivas de enfrentamento da opressão, como autodefesa, não mais percebemos o nosso próprio sofrimento, e portanto, muito menos o dos outros. Como, então, sentir alguma coisa? Voila, talvez com um acidente automobilístico. O automóvel de Ballard-Cronenberg pode ser entendido como mercadoria de forma geral, e as cicatrizes como o sofrimento resultante do domínio do trabalho abstrato. Os homens sem qualidades e insensíveis do século XXI se relacionam através de suas cicatrizes: as cicatrizes resultantes da transformação de sua criatividade em trabalho abstrato, da vida em sobrevivência, da sociabilidade direta em sociabilidade coisificada, da vontade de viver em instinto de morte; as cicatrizes da dominação.

“Transformação dos corpos pela tecnologia moderna”, é o que prega o líder dos fetichistas do filme. Transformação dos corpos: Foucault mostrou o adestramento dos “corpos dóceis” pelos sistemas de vigilância e punição utilizados em fábricas, escritórios, presídios, escolas, clínicas; Marcuse mostrou o confinamento de Eros à região genital para realizar o predomínio do princípio de desempenho sobre o princípio de prazer – a acumulação primitiva do sujeito tem indubitavelmente um momento somático. Isso remete à relação capital, técnica e dominação, conforme conceitualizada por Adorno & Horkheimer:

“O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que está a serviço de todos os fins da economia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim também está à disposição dos empresários, não importa sua origem. Os reis não controlam a técnica mais directamente do que os comerciantes: ela é tão democrática quanto o sistema económico com o qual se desenvolve. A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital. (...)O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação”.

O “substrato de dominação” (a natureza) inclui o corpo humano, os “corpos dóceis”. Descendo a um nível mais empírico, Ivan Illich – pioneiro do pensamento ecológico radical – observa:

“Não pode existir uma sociedade que mereça a qualificação de ‘socialista’ quando a energia mecânica que ela utiliza esmaga o ser humano. Passado um certo ponto, inevitavelmente esta energia tem um tal efeito. Existe uma constante K. Essa constante indica a quantidade pela qual se deve multiplicar a energia mecânica utilizada para todos os fins na sociedade. Não pode existir essa combinação de sociedade ‘socialista’ se K não permanece dentro de limites. A sociedade deve ser considerado subequipada para uma forma de produção participativa e eficaz quando K não alcança o limite inferior. Quando K passa a ser maior que o valor do limite superior, termina a possibilidade de manter uma distribuição eqüitativa do controle sobre o poder mecânico da sociedade” (Illich, Energia e equidade).

A conclusão de Illich é que uma sociedade socialista anda na velocidade da bicicleta, que com sua tecnologia simples, ecológica e energeticamente eficiente, oferece um contraponto à breguice suja do automóvel. “Mas a bicicleta não é rápida o suficiente!”, reclamarão os fetichistas do motor a gasolina. Mas quem precisaria chegar rápido quando não houvesse mais trabalho abstrato e dominação, quando a técnica avançada, liberada da camisa de força do capital, fosse colocada para trabalhar para nós, liberando-nos da labuta, do esforço e da pressa, quando o homo ludens conquistasse o reino da liberdade, aposentando o homo faber? E para longas distâncias, existem o bonde e o trem, que harmonizam-se muito melhor com a paisagem humana e natural, e o avião, de uso excepcional. Até poderiam existir alguns automóveis de uso comum para deslocamentos a locais de difícil acesso, aí sim, utilizados segundo seu valor de uso. Mas há um longo caminho até lá: o automóvel já moldou as cidades à sua imagem e semelhança, principalmente no Novo Mundo – sem automóvel muitos lugares são inacessíveis, andar de bicicleta é perigoso, não existem trens, o transporte coletivo é “para pobres”. Na Europa, com suas velhas cidades mais antigas que o automóvel, principalmente na Holanda, ainda há um alento.

Voltando ao filme, se visto com aquele distanciamento e olhar oblíquo que potencializa a crítica, podemos ir contra-e-mais-além de sua negatividade, desviar o seu sentido: aí está a sua (nossa) transcendência, a contrapelo dos autores. Bem ao contrário do apelo feito pelo trailer (a linguagem especializada da mentira), que é uma espécie de fetichismo de terceira ordem (convida a uma apreciação fetichista de um filme fetichista sobre relações fetichistas):


Um comentário:

Anônimo disse...

um texto para sentir saudade do daniel.
este o é.
=)