domingo, 15 de março de 2009

Notas (caóticas) sobre futebol

Sobre futebol, jogo, capital, retranca, futebol holandês, Iluminismo, arenas, revolução, greves, passeatas e algumas outras coisas

Daniel Cunha


Este texto pode ser lido de várias formas. Como linha de passe, na qual os fragmentos dialogam entre si (não sem contradições e contratempos), e assim, podem ser lidos em qualquer ordem; como compacto, no qual somente os lances decisivos do jogo são mostrados, atalhando as hesitações e mediações; como drible, no qual se tenta superar a retranca armada contra o pensamento crítico neste início de século; e finalmente como um jogo em si mesmo, escrito que foi sem objetivos utilitários ou instrumentais. E se este texto abunda em citações, é apenas para lembrar que a bola e o campo estão lá, e se não jogamos é em grande medida porque não queremos: qualquer um poderia ter chutado essa pelota.


I


Futebol? Para muitos, são apenas 22 idiotas correndo atrás de uma bola. Para outros muitos, é apenas uma questão de resultado e matemática: quem ganhou? Qual o placar? A segunda opinião confirma a primeira. O que importa não é qualquer senso lúdico ou estético, mas o lucro líquido, o resultado. Para isso, claro, deve-se correr o mínimo de risco: segurança ascética, retranca, mediocridade. É o instinto de morte no futebol – cujo melhor representante talvez seja o sr. Celso Roth. Reduzido a isto, o futebol realmente se torna uma arena sado-masoquista, como bem descreveu Rubem Alves:


"É pra sofrer e fazer sofrer: um espetáculo depravado, perverso, onde o orgasmo acontece sobre o sado-masoquismo. Ninguém assiste a um jogo de futebol por razões estéticas. O tesão do futebol se encontra, precisamente, na possibilidade de fazer o outro sofrer. Pois o que é um gol? Um gol é um estupro. O prazer do gol é o prazer de ter estuprado o adversário, de ter metido a bola da gente no buraco dele contra a vontade dele. Uma partida de futebol é uma tentativa de estupro estilizada. Vai um time levando a bola, a bola tem de estar bem cheia, dura, vai o jogador ludibriando as tentativas de defesa, passando a bola no meio das pernas, o outro time faz tudo para evitar, fecha os buracos, todos lutando, não querem que a bola entre no lugar mais sagrado do seu time, aquele buraco guardado pelo goleiro, vem o chute potente, a bola vai, o goleiro se estira, inutilmente, a bola entra. Gol! O estupro aconteceu".


Estupro também nas arquibancadas. Entre as torcidas, o que se vê é a “secação”, a vontade de ver o outro sofrer – uma das coisas mais patológicas que podem existir no comportamento humano (estranhamente nunca ouvi ninguém dizer isso). A agressividade destrutiva da secação é bem exemplificada com os votos que os torcedores do Feyenoord e do Ajax fazem uns aos outros: os primeiros querem colocar os últimos em uma câmera de gás, e os últimos querem bombardear novamente a cidade dos primeiros. A brutalidade se reforça em ideologias protofascistas entre torcidas – por exemplo, a ideologia do “apoio incondicional”. Isso para não falar em vias de fato, inclusive com mortes, que já aconteceram na Holanda, no Brasil e em mutos outros países.


A coisificação do futebol tampouco pode ser considerada surpreendente. Como lembrou Adorno nos anos 40 do século passado:


"quando se aceita como verdadeiro o pensamento de Marx, de que na sociedade burguesa a força de trabalho tornou-se mercadoria e, por isso, o trabalho foi coisificado, então a palavra ‘hobby’ conduz ao paradoxo de que aquele estado, que se entende como o contrário de coisificação, como reserva de vida imediata em um sistema total compl­tamente mediado, é, por sua vez, coisificado da mesma maneira que a rígida delimitação entre trabalho e tempo livre. Neste prolongam-se as formas de vida social organizada segundo o regime do lucro".


A coisificação do futebol é um dos resultados da globalização do fetichismo da mercadoria. O lazer como esfera separada é o outro lado da moeda do trabalho (alienado) como esfera separada. Em um mundo onde trabalho cada vez mais é um estupro cotidiano, não deveria ser surpreendente que o futebol torne-se cada vez mais uma exibição de truculência e boçalidade. Pois o futebol hoje se presta até mesmo à especulação financeira e lavagem de dinheiro, com seus mega-investidores gastando milhões e milhões em suas transações. O esporte tende a reduzir-se a um "circo do desporto profissional que explora o corpo de alta competição como mercadoria num negócio lucrativo em grande escala" (Robert Kurz) – o ópio do povo.


Nem sempre foi assim, entretanto. Quem teve essa visão histórica foi Eduardo Galeano:


“La historia del fútbol es un triste viaje del placer al deber. A medida que el deporte se ha hecho industria, ha ido desterrando la belleza que nace de la alegría de jugar porque sí. En este mundo del fin de siglo, el fútbol profesional condena lo que es inútil, y es inútil lo que no es rentable. A nadie da de ganar esa locura que hace que el hombre sea niño por un rato, jugando como juega el niño con el globo y como juega el gato con el ovillo de lana: bailarín que danza con una pelota leve como el globo que se va al aire y el ovillo que rueda, jugando sin saber que juega, sin motivo y sin reloj y sin juez. El juego se ha convertido en espectáculo, con pocos protagonistas y muchos espectadores, fútbol para mirar, y el espectáculo se ha convertido en uno de los negocios más lucrativos del mundo, que no se organiza para jugar sino para impedir que se juegue. La tecnocracia del deporte profesional ha ido imponiendo un fútbol de pura velocidad y mucha fuerza, que renuncia a la alegría, atrofia la fantasía y prohibe la osadía”.


O que Galeano descreve é o processo histórico de acumulação primitiva (Marx) do futebol, que desemboca na identificação do princípio de realidade com o princípio de desempenho (Marcuse). A “profissionalização” do futebol é a transformação do jogo em trabalho, do clube em empresa, do instinto de jogar em pulsão de retranca.


Mas o futebol é histórico, e tudo o que é histórico pode ser mudado.


II


Albert Camus coloca o futebol no centro de seu aprendizado moral:


"Após muitos anos durante os quais vi muitas coisas, aquelas coisas que eu sei com mais segurança sobre a moralidade e os deveres do homem eu devo ao esporte, e as aprendi no RUA" [Racing Universitaire Algerios, o time no qual jogou].


O jogo que encantou Albert Camus, alguma beleza tem de ter. Muitas vezes subestimado por intelectuais – especialmente os de esquerda, que o identificam como “ópio do povo”, o futebol também é uma arte. A técnica necessária para jogar bom futebol é comparável àquela necessária a um bom músico, ou a um bom pintor. Segundo Rudi van Dantzig, autor de vários balés para Rudolf Nureyev (e ele próprio bailarino), o dançarino russo era admirador de Johan Cruijff:


“Rudolf disse que Cruijff deveria ter sido bailarino. Ele se intrigava com seus movimentos, sua virtuosidade, a maneira como podia de repente mudar de direção e deixar todos para trás, e fazer tudo isso com perfeito controle, balanço e graça. Ele se espantava com a velocidade de pensamento de Cruijff. Você podia ver que ele estava pensando muito à frente. Como um jogador de xadrez. (...) A performance de Cruijff é algo que ele adoraria poder reproduzir”.


No século XXI, do futebol-neoliberal-de-resultados, estes momentos são cada vez mais raros, inegavalmente. Se atentarmos às três características definidoras do jogo, segundo Huizinga, a saber: (1) liberdade, (2) esfera especial de espaço-tempo cindida da vida “normal” e (3) seu caráter não-utilitário, talvez apenas o segundo elemento se mantenha sem sérias defecções. A liberdade se perde em meio à clausura dos sistemas defensivos e ao despotismo do técnicos, e o desinteresse utilitário com o profissionalismo e a mercantilização sem limites. Como lembra Huizinga, até os animais jogam: estaríamos desaprendendo a jogar, e assim regredindo a um nível pré-animal?


Mas mesmo nestes tempos obscuros – onde tudo é utilitarismo, dinheiro, valor, resultado – de vez em quando é possível ver coisas belas. Ou: a fetichização implica a anti-fetichizção (John Holloway). Galeano:


“Por sorte, ainda aparece nos campos, ainda que muito de vez em quando, algum desaforado que sai da cartilha e comete o disparate de driblar toda a equipe adversária, o juiz, e o público das tribunas, pelo puro gozo do corpo que se lança à proibida aventura da liberdade”.


Isso aconteceu, por exemplo, na final do Campeonato Gaúcho de 1999, quando Ronaldinho Gaúcho teve a maior atuação de um jogador de futebol que eu tive a oportunidade de ver – que ficou lembrada pelos dribles em Dunga. Mas aquilo não poderia ficar impune: Celso Roth, revoltado com todo aquela exuberância lúdica, com todo aquela liberdade, o substituiu. Por um volante.


O futebol-neoliberal-de-resultados sufoca quase toda capacidade de transcendência do futebol. Assim como a qualidade da execução de uma música não depende apenas da última nota tocada por um pianista; assim como a qualidade de uma pintura não depende apenas da última pincelada, mas de todo o processo de execução, o bom futebol não depende apenas do placar final. Como lembra Ruud Krol, da seleção holandesa de 74: “Futebol não é arte – mas há arte em jogar bom futebol”. E Cruijff nos faz sonhar com um futebol melhor, com um mundo mais belo: “Não há melhor medalha do que ser aclamado por seu estilo”.


Estilo – é o que falta aos homens sociabilizados sob o capital, que tudo o que toca uniformiza e banaliza: o mundo dos homens sem qualidades. Construir a própria vida como obra de arte, como estilo, como jogo: a suprema promessa.


III


Adorno & Horkheimer desvendaram os segredos obscuros do Iluminismo. Portador das maiores promessas da humanidade – liberdade, justiça, igualdade, emancipação – o Iluminismo acabou por recair no mito: a quantificação como fim em si, a separação insensível de sujeito e objeto, o conhecimento como poder-sobre, como dominação. Os deuses e as superstições foram susbstituídos pela mercadoria, essa coisa tão trivial à primeira vista, mas abundante em sutilezas metafísicas.


A dialética do iluminismo foi escrita nos anos 40, descrevendo um processo já consolidado. Nesta época o futebol ainda era majoritariamente amador. O futebol somente posteriormente foi colonizado pelo capital, e assim teve um desenvolvimento temporão, uma modernização retardatária. Apresento aqui a tese de que o futebol holandês do fim dos anos 60, culminando na seleção holandesa de 74, representou o ápice das promessas futebolísticas, com a reunião do desenvolvimento das forças produtivas (preparo físico, conhecimento tático) com a técnica, criatividade e liberdade dos jogadores (fruto talvez do espírito dos anos 60; lembremos os PROVOS holandeses). Os dois pólos são representados por Cruijff – técnico, criativo, brilhante – e o treinador Rinus Michels, apontado por comentadores e jogadores como autoritário, e conhecido pelo apelido de “general” (ainda que essa separação seja mais esquemática do que absoluta). Após aquele momento mágico, o futebol “estourou” – o preparo físico e os esquemas táticos pragmáticos e medíocres suplantaram em muito o pólo criativo, e os times-brucutu de hoje são o resultado deste processo de traição das promessas, da fetichização do futebol. “O treinador dizia: vamos jogar. O técnico diz: vamos trabalhar” (Galeano).


Notável, entretanto, que o futebol holandês segue sendo aquele que mais busca lembrar aquelas velhas promessas. Após a capitulação do Brasil, que se rendeu quase que totalmente ao cinismo do neoliberalismo-retranca, a Holanda talvez esteja sozinha. Por exemplo, deve ser o único lugar do mundo onde ainda existe discussão sobre a utilização do 4-3-3. Já no Brasil, um treinador recebe mais de 200 mil reais mensais para escalar um time com apenas um atacante (talvez ele entendesse uma referência ao 4-3-3 como “quatro goleiros, três zagueiros, três volantes?”).


Cruijff: “Digamos assim: o 4-4-2 é um grande sistema para jogadores medíocres... Um monte de corpos na defesa para impedir o avanço do adversário, homens musculosos e fortes no meio campo e dois atacantes rápidos e oportunistas na frente. Um pouco como o Chelsea de Mourinho. E como o PSV Eindhoven. Times de sucesso, claro, mas não times que serão lembrados pela qualidade de seu jogo”.

No Brasil, onde predomina a máxima "ganhar de um a zero com gol em impedimento" - síntese da mais profunda decadência estética e moral - isto talvez soe surreal. E isso não foi dito no calor dos anos 60, mas em 2007. Cruijff talvez não saiba, mas está sendo extremamente subversivo com o que diz. Ele está favorecendo o belo em detrimento do utilitário, o estilo em detrimento do resultado, o valor de uso em detrimento do valor de troca. O futebol como jogo, e não como negócio, trabalho. É a mais perfeita contracorrente do pensamento neoliberal dominante, cujo pressuposto tácito é a democratização da mediocridade. Cruijff está sempre lá para lembrar que “o futebol é constituído em sua maior parte pela técnica, e esse esporte fantástico foi feito para o prazer, para o gozo, e não para correr para cima e para baixo dando pontapés como uma galinha degolada”. E sabe ser dialético: “Romário era o meu melhor zagueiro” (quando técnico do Barcelona).


Outro ex-jogador holandês, Ruud Gullit, cunhou a expressão sexy football. Comparando o sexy football com o estilo do técnico italiano Fabio Capello, ele afirma: “Futebol sexy? Não, não acho. Ele pensa em vencer. Trabalhei com ele por quatro anos, e ele é um treinador que joga para vencer. Ele não joga pela beleza do jogo, mas para vencer, e isso é tudo”. Gullit vê claramente a correlação entre futebol-de-resultados e feiúra, a oposição entre o futebol sensual, belo, espontâneo e expansivo e a (digamos claramente) retranca. Aliás, os praticantes do catenaccio parecem ser a referência preferida para indicar o contrário do ideal holandês de futebol. A frase de Cruijff ficou famosa: “Os italianos não podem nos vencer, mas nós sim, podemos perder para eles”; um torcedor recentemente entrevistado pela revista do Ajax: “Não sei como os italianos podem gostar de futebol... aquilo não é para ser visto!”


É também na Holanda, mais precisamente na Frísia, que está o Heerenveen, o time que tem como filosofia jogar futebol ofensivo e qualificado, e que pensa que a posição ideal de um time em um capeonato fica entre o quarto e o quinto lugares, segundo o treinador Foppe de Haan, que ficou por mais de vinte anos no clube. E a última demonstração dos holandeses como portadores da promessa futebolística (traída) foi na Euro2008: os melhores jogos de ser assistidos foram os da Holanda – inclusive quando perdeu.


IV


Da rua à arena: o percurso do futebol, de esporte de amadores – amadores: aqueles que jogam porque amam o jogo – ao futebol-mercadoria (tudo por dinheiro) mudou radicalmente a configuração de seu espaço.


Da rua à arena: “No meu tempo a rua era a escola mais popular para descobrir os segredos do futebol” (Cruijff). Futebol e amizade eram inseparáveis. Relações entre pessoas.


Da rua à arena. A arena não é nada mais do que a intensificação capitalista do espaço-tempo do futebol. O jogo mercantilizado é integrado com todo tipo de comércio. Nenhum milímetro de solo pode ser desperdiçado. Entre os jogos, eventos, shows, congressos, nada pode parar, pois tempo é dinheiro. Fetiche da mercadoria: relações sociais entre coisas e relações coisificadas entre pessoas.


Um dos resistentes é mais uma vez um holandês, o arquiteto Dirk Sijmons, que critica a Arena do Ajax:


“O velho estádio do Ajax era pequeno demais e não era bonito segundo nenhum padrão, mas ele era bom e aconchegante. E ele foi construído para o futebol, e não para fazer dinheiro. Você vê agora como o Ajax é vulnerável. É como um daqueles caranguejos, que, quando crescem, têm que encontrar uma nova concha. E enquanto eles estão à procura, estão muito vulneráveis. O Ajax tem que passar por um período como esse agora, porque a Arena não é um lar. Eles jogam lá um domingo. Mas então há um concerto dos Rolling Stones. Então, um grande congresso. Então, o lançamento do novo carro espacial da Mitsubishi. Então, depois de sete dias, o Ajax pode ir e jogar futebol novamente. Essa obsessão holandesa multi-funcional de fazer dinheiro com o mesmo prédio de muitas formas, tornando o estacionamento disponível todos os dias, esse tipo de coisa... É uma idéia brilhante, claro, mas ela arranca a vida de um estádio de futebol. Um estádio também tem que descansar entre os jogos. Ele deveria esperar vazio por uma semana antes do jogo, antes que o próximo fluxo de pessoas chegue. Um estádio, de certa forma, precisa meditar. Isso é o que a Arena nunca poderá oferecer. Ela é uma instituição cuja única finalidade é fazer dinheiro, e uma dessas formas de fazer dinheiro é o Ajax. Isso é tudo. E todos sentem isso. Você tem como que apagar a luz quando vai embora, e então ela é de outros. Nós somos apenas hóspedes aqui”.


Sob o tempo abstrato do capital, nada pode meditar, nada pode ficar ocioso. Ritmos frenéticos, ritmos do trabalho abstrato.


O próximo “arenado” parece que vai ser o meu time, o Grêmio, se a crise do capitalismo não impedir. Sob os aplausos da massa mistificada.


V


A separação da vida em esferas é produto da época histórica do capital. Foi o capital que destacou uma gama de atividades humanas do restante da vida social – o “trabalho”, a atividade social que acumula capital. Assim, a distinção rígida entre trabalho e lazer só é plena para os sujeitos-sujeitados da mercadoria. Trabalho e lazer são dois lados da mesma moeda, da mesma alienação, como nos lembra Adorno. Assim, tomar o “ponto de vista do trabalho” é desde já encerrar-se na alienação, assim como o seria tomar o ponto de vista do lazer. Mas e se o lazer, a diversão coisificada derivada do trabalho abstrato, for subvertido em jogo, e se a separação entre estas esferas for subvertida?


Talvez os intelectuais de esquerda desdenhem do futebol porque ele é “apenas” um jogo; ele não é “sério”. No que o futebol poderia contribuir para a revolução? A revolução é na fábrica! Atitude que cabe bem aos leninistas, para os quais o revolucionário é o sujeito que se sacrifica, é um asceta obediente (do partido) e disciplinado, é um trabalhador que orgulha-se de sê-lo. Talvez a melhor demonstração disso seja a forma preferida de manifestação dessa esquerda tradicional: a forma-passeata. Aqui sustento que não é por acaso que a forma-passeata guarde semelhança com uma via-crucius. De fato, por vezes tem-se a impressão de que os sindicalistas estão prestes a pedir que os manifestantes rastejem de joelhos ou carreguem uma cruz. Essa forma corresponde também ao tipo estadocêntrico de revolução: em uma passeata todos se dirigem ao mesmo lugar, a um mesmo ponto central de poder que, se pudessem e se aquilo não fosse apenas uma encenação espetacular, tomariam.


Se no entanto tomarmos como ponto de partida a tradição conselhista, ou se ouvirmos os ecos dos zapatistas, por exemplo, que querem mudar o mundo sem tomar o poder, pois o Estado em si é uma forma de dominação que deve ser superada; e se, além disso, inspirados pelos situacionistas franceses, vemos a revolução como transformação da vida em jogo, como a abolição do trabalho (autoabolição dos trabalhadores) propiciada pelo desenvolvimento das forças produtivas, então a forma-passeata deve ser superada, por sua completa inadequação com a forma e o conteúdo da revolução. O que propomos aqui é uma forma de manifestação acêntrica e lúdica: joguemos futebol. Façamos greves que bloqueiem as principais avenidas da cidade para a realização de peladas. Assim, jogamos enquanto interrompemos o fluxo de mercadorias na cidade. Assim, dificultamos a vida da polícia: com, digamos, mil pessoas, é possível realizar várias peladas em vários pontos diferentes, o que é muito mais difícil de ser controlado do que uma única concentração centralizada. Assim, transformamos a vida em jogo, na prática, e lembramos que a greve não é um sacrifício, que a rebelião é uma festa. A revolução é uma festa ou não é nada. Então, paremos com as via-crucius e joguemos bola. Como dizia Huizinga, o grande teórico holandês do jogo como elemento central da cultura: “justamente o outlaw, o revolucionário, o blefador, o herege, inclina-se fortemente ao coletivo e de fato quase sempre é dotado de um forte caráter lúdico”.


As desvantagens da greve-jogo são óbvias e não precisam ser citadas aqui. Mas para quem pensa que há alguma novidade nisso, remeto ao que sabiamente aconselhou Raoul Vaneigem na França de 1967, pouco antes dos acontecimentos de maio do ano seguinte:


"À medida que a automação e a cibernética deixam prever a substituição em massa de trabalhadores por escravos mecânicos, o trabalho forçado revela pertencer aos processos bárbaros de manutenção da ordem. O poder fabrica assim a dose de fadiga necessária à assimilação passiva de seus decretos televisionados. Por qual recompensa trabalhar de agora em diante? A farsa se esgotou; não há mais nada a perder, nem mesmo uma ilusão. A organização do trabalho e a organização do lazer resguardam as tesouras castradoras encarregadas de melhorar a raça dos cães submissos. Veremos qualquer dia os grevistas, reivindicando a automação e a semana de dez horas, escolherem, como forma de greve, fazer amor nas fábricas, nos escritórios e nos centros culturais? Somente se inquietariam e se espantariam os planejadores, os gerentes, os dirigentes sindicais e os sociólogos. Com razão, talvez. Afinal, é a pele deles que está em jogo".

VI

"Aqueles que falam de revolução e luta de classes sem se referir explicitamente à vida cotidiana, sem compreender o que há de subversivo no amor e de positivo na recusa das coações, esses têm na boca um cadáver." (Raoul Vaneigem)

Um torcedor que exige que o seu time vá para o ataque e jogue bom futebol está mais perto da revolução do que qualquer leninista.


VII


Este texto é apenas um jogo – mas só o jogo merece ser levado a sério.



***


Para terminar bem, um pouco de bom futebol...

Lances de Johan Cruijff, com sua incrível combinação de técnica, controle e velocidade, e gols de cobertura que desafiam o senso comum. O que não dá para ver é a inteligência tática coletiva de Cruijff que é destacada por muitos comentaristas - em muitas fotos ele aparece apontando o dedo para orientar o melhor posicionamento dos companheiros. (Reparar no lance a aproximdamente 1:35 - enquanto para muitos jogadores do futebol atual dominar aquela bola talvez fosse de uma dificuldade grande ou intransponível, Cruijff parece ter pensado todo o desenrolar do lance antes que a bola chegasse a seus pés).




Compacto da estréia da Laranja Mecãncia na Copa de 74. O Uruguai praticamente não conseguiu passar do meio de campo durante o jogo inteiro, tamanho o ímpeto ofensivo dos holandeses - até a marcação era ofensiva.






Referências

Ajax Kick Off, seizoen 2008-2009, nr. 12, De supporter aan het woord

Cláudio Duarte, Futebol, capital, sado-masoquismo

Daily Mail, Gullit: Capello does not play sexy football

David Winner, Brilliant Orange

Eduardo Galeano, Fútbol a sol y sombra

Herbert Marcuse, Eros e civilização

Holanda x Uruguai, gravação completa disponível como torrent na internet

Johan Cruijff, Ik houd van voetbal

Johan Huizinga, Homo Ludens

John Holloway, Doze teses sobre o antipoder

Karl Marx, O capital

Raoul Vaneigem, Traité de savoir-vivre à l’usage de jeunes générations

Robert Kurz, O futebol como bolha financeira

Rubem Alves, Sobre o futebol e o estupro

Theodor Adorno e Max Horkheimer, A dialética do Iluminismo

Theodor Adorno, Tempo livre

Um comentário:

Palestina livre disse...

Cara, que texto fudido, gostoso de ler...
Sempre pensei em jogar futebol nas ruas e praças em plena luz do dia, em pleno dia de trabalho...uma vez levei uma bola numa manifestação do MPL em Mogi, mas só tinha gente do PSTU lá, os "autônomos" não apareceram. Acho formidável essa idéia de bater uma bolinha nas avenidas, parando o trânsito, sobretudo no brasil, onde podemos usar a desculpa: 'acalme-se seu guarda, estamos no país do futebol'

Coveiro