segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O paraíso dos holandeses (mais sobre patinação)

Como já dito em outro post, Os holandeses são loucos por patinação no gelo, especialmente se for ao ar livre - um canal ou lago congelado. Um holandês me diz que, depois do futebol, é o esporte mais popular da Holanda. Indo de trem a Groningen, pego o jornal abandonado e me deparo com uma reportagem de página inteira (padrão Folha de São Paulo) sobre o esporte. Alguns trechos:

Por que patinamos?

“É um festa comunal”, diz Max Dohle, publicista,
expert e praticante de patinação. “É euforia, amor, feira. A patinação é para todos poderem flutuar. É liberdade. E a natureza é tão encatadoramente bela quando se patina com esse tempo. Também por isso patinamos. Considerando a maneira como nos relacionamos com a natureza, estes dias são um imerecido presente”.
(...)


(...) a moral do gelo era diferente daquela do chão firme.

Dohle: “O gelo era de todos. Não havia clubes de patinação cristãos. O gelo era profano. No gelo as pessoas podiam por um momento livrar-se dos estritos preceitos religiosos e leis morais.

(...)

No gelo livre os protestantes podem esquecer até mesmo a forte moral de sua fé. Se os católicos tinham o carnaval uma vez por ano para enlouquecer, para os protestantes o paraíso da libertinagem se abria após três noites de forte geada. Dohle: “No gelo cada um pode facilmente tocar o outro”. No gelo, é possível dançar e beber. O amor caloroso floresceu no frio glacial. (...)

No gelo constitui-se também uma forma natural de solidariedade e altruísmo. “Era uma confraternização necessária. Não se podia deixar pessoas para trás, pois elas morriam. Você tinha que puxar. O mais forte à frente, o mais fraco atrás”.

(...)

Tem aquele ditado: um frísio, um patinador; dois frísios, uma corrida de patins. [Frísia é uma província no norte da Holanda, da bandeira de coraçõeszinhos e da língua frísia, onde parece que a paixão pelo gelo atinge seu ápice].

(...)

Jornalista Jan de Jong: “Transmitimos vários eventos interessantes, como os Jogos Olímpicos, a Eurocopa e a Copa do Mundo, mas se há algo pelo qual nosso coração bate mais forte, é com certeza a Elfstedentocht [Volta das Onze Cidades; como diz o nome, competição de patinação no gelo na qual os concorrentes passam por onze cidades do norte da Holanda]. Não há nada mais lindo, único e holandês".

(De Volkskrant, 10/01/2009)

Segundo informações do website de Max Dohle (que contém uma enorme variedade de informações sobre patinação no gelo: literatura, história, etc.), os patins mais antigos conhecidos datam de 1250, encontrados em Dordrecht, cidade onde a patinação no gelo teria começado. A palavra schaats (patins), importada do picardi (dialeto do norte da França), teria aparecido pela primeira vez em um poema erótico de 1524, sobre uma ninfomaníaca que constantemente convidava Hans para seus jogos. Segundo Dohle, os patins são freqüentemente associados ao erotismo na literatura holandesa.

O poeta e comunista de conselhos Herman Gorter (que ainda merecerá um bom post neste blog)escreveu um poema sobre o gelo:

Stil staan wij als twee meeuwen
Op het ijs -
Roerloos is rondom,
Als eeuwen,
Het wereldpaleis


Tradução aproximadamente literal, sem as rimas meeuwen/eeuwen e ijs/paleis:

O silêncio diante de nós, como duas gaivotas
No gelo -
A quietude nos circunda,
Como séculos,
O palácio do mundo

Os holandeses discutem se a patinação é ou não é calvinista (lembrando que o norte da Holanda tem tradição majoritariamente protestante, e o sul, católica), e fazem blogs somente sobre o esporte. Na televisão, o historiador da cultura Herman Plij fala sobre a schaatsgekte (loucura dos patins), destacando a relação entre patinação e solidariedade (no início do vídeo aparece alguém medindo a espessura do gelo, para ver se está seguro para patinar):



Diante de tudo isso, poucas coisas podem ser mais fora do lugar do que um brasileiro patinando no gelo. Mas eu fui. A minimização do atrito resultante do contato do gelo com uma lâmina de metal estreita parece ter algo a ver com o paraíso, a utopia, a ausência de trabalho, o vôo. Mas a falta de coordenação (e os tombos) constantemente me lembravam das dores do mundo.

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